terça-feira, 21 de outubro de 2014

Animals


“Não, nós nunca vamos parar
Não há nada de errado com isso
Apenas agindo como animais
Não, não importa onde vamos
Porque todo mundo sabe
Nós somos apenas um casal de animais”
Animals - Nickelback


Anne nunca pensou que um dia cometeria a loucura de ser apaixonar por um valentão. Não era do seu feitio, afinal sempre fora a garota simples e ingênua da turma. Fazia muito mais o tipo romântica com seus vários vestidos floridos e acessórios de laços, corações e todos os tipos de frufrus. Ela realmente não entendia como aquela paixão havia começado. O homem dos seus sonhos era loiro, olhos azuis brilhantes, sorriso contagiante, amante romântico, como um verdadeiro Romeu. David não era nada disso. Com olhos escuros profundos, cabelos tão negros quanto a noite e quase nunca sorria para os outros. Talvez ela também não fosse Julieta.

A estrada que percorriam não era das melhores. Enquanto David comandava a direção, Anne tentava manipular o mapa. Várias vezes entraram em ruas estranhas pela falta de habilidade dela com o objeto. Ele ria, divertindo-se com o fracasso da moça e as continuas tentativas de acertar. Essa era outra característica marcante em Anne: o desejo de sempre acertar tudo. Já frustrada com o mapa por não saber manipulá-lo, Anne jogou-o nos braços de David e cruzou os seus. Brava consigo mesma, mirou a janela. Com certeza estavam perdidos e por culpa dela. David parou o carro na rua deserta e pegou o mapa. Anne bufou, irritada por ser incapaz de desvendar algo tão simples.

- Estamos perdidos. Completamente perdidos. – ela sussurrou com a cabeça encostada no vidro. Ele apenas sorriu, concordando, enquanto levava um belo tapa no braço. – Idiota.

O calor já se tornara insuportável dentro do automóvel, apesar do ar estar ligado. David abriu a porta e colocou-se de pé ao lado da porta. Não tinha dúvidas, estavam perdidos. Perguntaria sem nenhum problema para um estranho onde estavam, isso se houvesse alguém por ali. Levantou a cabeça, sentindo o sol cegar-lhe os olhos.

- Desculpa. – sussurrou Anne, já ao seu lado.
- Daremos um jeito. – ela sorriu timidamente. Sabia que era a culpada. David tocou-lhe o braço levemente. – Somos um casal de animais, não somos?

Anne riu ao lembrar-se do apelido que o pai dela havia lhes dado. Um casal de animais. Ela não podia negar que realmente se pareciam com isso. Quando decidiu apresentar David a família já sabia que o pai não gostaria nada do novo genro. “Ele é um animal. Os dois são. Um casal de animais”, disse o pai logo depois que David deixara a sala para ajudá-la na cozinha. Lembrou-se de como riram, deixando cair duas xícaras de chá no chão; de como correram pela porta dos fundos ao ouvirem o grito da mãe sobre a porcelana novinha estilhaçada no chão.

Tomaram um gole da garrafa de água já quente que traziam no carro e seguiram caminho pelo desconhecido. David ligou o rádio na tentativa de animar o local, colocou suas músicas de rock e cantava alto suas preferidas. Anne ria, enquanto tentava acompanhar o ritmo com seu inglês perfeito. Ela era como uma princesa. Tinha tudo o que uma menina/mulher desejava. Por ser filha única, fora completamente mimada pelos pais. Viajara pelo mundo, aprendendo então o inglês perfeito que agora dominava. Certa vez convidara David para uma viagem, logo após o término do colegial, porém ele recusara. Hoje conhecia o motivo. David era um aventureiro, gostava de sentir o vento no rosto, apreciar a paisagem. Se era para viajar, que fosse de carro. Anne aumentou o volume do rádio, cantando alto uma de suas conhecidas. Ambos riram quando ela se empolgara e gritara alto demais a letra da música. Era uma total loucura o que faziam, mas Anne tinha certeza de que fizera uma boa escolha ao aceitar o programa de índio que David propusera. Isso até estarem no meio do nada.

Quando saiu de casa naquela manhã, logo que o sol apareceu, Anne não fazia ideia do que aconteceria. Se sua mãe soubesse do programa com certeza estaria em casa a essa hora. Seu pai deve estar louco atrás dela, ligando incansavelmente para o telefone desligado no porta-luvas. Saiu tão depressa que, ao bater a porta, ouviu o barulho das cortinas no andar de cima. Ousou um olhar rápido para a janela e viu sua mãe que, mesmo sonolenta, estava de olhos arregalados. “NÃO SE ATREVA, ANNE”, ela gritou, mas já era tarde demais. Quando a mãe chegou ao portão da casa, David já havia virado a esquina. Há alguns anos atrás Anne voltaria logo ou recusaria a saída, porém ela já não era mais a mesma.

Um casal de animais. Todos eles tinham razão, afinal. Eram dois malucos. Malucos um pelo outro. Anne colocou a cabeça para fora do carro, sentindo o vento forte bater em seu rosto. Entendia perfeitamente o jeito aventureiro de David, o prazer em se sentir livre. Ele não era de se preocupar com os outros, muito menos em pensar nas consequências de suas palavras e seus atos. Ele tinha a liberdade que Anne sempre desejou. Aquela pequena menina mimada, inocente, infantil e ingênua que seus pais haviam criado hoje já não era mais a mesma.

Já cansada da viagem, do calor e do pequeno espaço para esticar as pernas, Anne deixou sua cabeça cair no ombro de David. Fechou os olhos, tentando descansar, porém o calor e o chacoalhar do carro a impediram. Estava exausta, sem saber exatamente onde estavam e nem para onde iriam. Abriu os olhos sonolentos e olhou de canto para David que estava sorrindo.

- Até que você não é tão ruim com mapas. - ela se recompôs e mirou as montanhas de areia logo a sua frente. Sentiu o cheiro de praia invadir suas narinas. Sorriu em resposta. Queria sentir a areia entre seus dedos, a água salgada refrescá-la.

Não demorou muito e David parou o carro no meio da areia. A praia estava deserta. Ela tirou as sandálias e correu pela areia. Ele ria da menina. Ela era tão jovem, tão alegre. Jogou os tênis no carro e saiu correndo atrás dela. Pareciam loucos, ou melhor, animais. Assim que a alcançou, pegou-a no colo e seguiram para o mar. Anne sentiu a água fria no corpo todo quando David a jogou no mar. Rindo, ele a viu se levantar furiosa e antes que Anne pudesse dar o troco ele mesmo se jogou no mar. Anne tocou água na cara dele quando ele resurgiu na superfície. Eram duas crianças grandes. Essa tal liberdade Anne só passou a conhecer quando encontrou David em um dos corredores da velha escolha com o cabelo bagunçado e olhos sonolentos. Ela já tinha ouvido falar dele, o tal menino que dormia em todas as aulas e desafiava a diretoria. Jamais cogitaria a ideia de se apaixonar por um maluco como ele, mas o destino prega peças. Certo dia ele entrou na aula de química, como sempre sonolento e sentou-se ao lado dela. Ótimo, teria que ter como parceiro um dorminhoco. Depois de 1 mês, eles finalmente trocaram palavras. “Bom dia” essa foi a primeira vez que Anne ouvira David falar. Educada como era, ela respondeu. Começaram uma longa conversa. Quem diria que o menino dorminhoco e maluco seria tão interessante.

O sol já começara a se por no horizonte. Anne sentou-se na areia, ofegante, com David ao seu lado. Exaustos assistiram o por do sol. O calor já começava a diminuir, porém continuava insuportável. As roupas coladas no corpo estavam quentes novamente. David passou o braço pelos ombros de Anne, admirando a grande bola laranja desaparecer por trás do mar. Agradecia aos céus por ter conhecido tal garota. Anne era do tipo de menina que se interessava por coisas simples, dava valor as pequenas coisas, gostava do fácil. Porém, o impossível nunca constou no seu vocabulário. Era um tanto misteriosa, mas possuía o mesmo tanto de maravilhosa. Não era a mais bonita, nem a mais popular, mas era verdadeira consigo e com os outros e era isso que contava. Ela tinha valores. Ele nunca pensou em estar com uma garota dessas.

Pegaram a estrada de volta. Cansada demais, Anne dormiu a viagem toda, acordando quando chegavam novamente à cidade. Pousou a cabeça no ombro de David, preguiçosa. O calor quase não existia, a temperatura estava ideal. Olhou para os olhos profundos do homem ao seu lado. Aqueles olhos que a encantavam, apesar de não terem nada de especial. Ele olhou-a confuso pela admiração da moça, fazendo-a rir. Já estavam na frente da casa de Anne, as luzes apagadas.

- Boa noite. – Anne sussurrou. David sorriu misterioso e em pouco tempo ambos estavam no banco de trás. Anne ria da situação enquanto David tentava algo. Ele era um tipo diferente de todos os outros caras com que ela havia estado. Era particularmente atraente, de uma maneira que ela não sabia descrever.  Sentiu os braços fortes dele apertarem seu corpo enquanto a respiração ofegante em seu ouvido aumentava seus arrepios. Com naturalidade, Anne puxou o rosto de David para si, que sorriu safado e beijou-lhe suavemente. Um casal de animais. No fim de tudo a viagem não seria um total fracasso.


Loucos. Nada além de loucura havia naquelas mentes. Malucos. Irracionais. Animais. Um belo casal de animais. Anne suspirou alto, deitada no banco de trás com um David cansada em cima dela. Acariciou-lhe as costas com as unhas, deixando belas marcas vermelhas na pele deliciosa dele. Sentia uma carícia na curva da cintura provando que ele não havia se entregado ao cansaço. Olhos as nuvens abraçando a lua pelo teto solar. Certamente estava frio, mas ali eles estavam extremamente quentes. Estava um silêncio gostos, a não ser pela respiração de David em seus ouvidos. Havia pouca luminosidade, da lua, do poste da esquina e uma pequena luz do lado de fora do carro que atraiu seu olhar. Uma lanterna. Seu pai. Olhos arregalados de susto e medo.

- DAVID! – Anne gritou. David olhou-a assustado. Seguiu o olhar dela. Droga!

Escrita ao som de Animals - Nickelback 

Agora que você se foi pra sempre ...

A noite estava tão fria quanto o coração daquela mulher que cruzava a esquina a caminho do ponto de táxi.
Ela carregava lágrimas pesadas nos olhos, além de duas malas velhas e surradas. A moça olhou uma última vez para trás, vendo o homem que estava de pé na janela do apartamento, com uma garrafa de bebida na mão e uma cara séria.


"Não sei o que está acontecendo 
Não sei o que deu errado"


Ela entrou no táxi e deixou as lágrimas expulsarem a dor do coração despedaçado que carregava dentro de si.

"Então eu ficarei acordado a noite toda 
Com esses olhos vermelhos"

A luz da lua entra pela janela aberta do quarto de um antigo casal apaixonado. O relógio marca 2h da manhã. Ainda há vestígios da briga que acontecera 4 horas antes.  Cacos de vidro pelo chão, roupas rasgadas, fotos destruídas, cheiro de bebida ... e de sangue. O guarda roupa está quase que totalmente vazio. As únicas coisas que ainda permaneciam ali eram as poucas roupas de um homem e algumas caixas já reviradas.  O vento sopra as cortinas, chegando ao rosto do homem jogado na cama. O homem respira fundo algumas vezes, coloca as mãos na cabeça, sentindo-se tonto. Senta na cama com dificuldade e então foca sua visão no quarto. Ele levanta da cama e passeia pelo quarto com cuidado, observando cada pedaço do relacionamento destruído há algumas horas atrás. Aproxima-se da janela, relembrando o momento que a mulher da sua vida partira.


"Parece que foram cem anos
Eu ainda não acredito que você se foi"

Ele senta no chão e pega uma das fotos. A foto de uma das milhares aventuras que fizeram juntos. O casal de jovens sorria apaixonado um para o outro, sentados na ponta do cânion, acreditando que o amor deles seria para sempre. Aquele amor já não existia mais. O homem não sabe nem se aquele amor tinha realmente existido. No final, todos tinham razão. Eles eram muito novos para viver aquela paixão.


"Enquanto essas paredes cercam-me 
com a história da nossa vida"

O homem vai juntando cada foto jogada no chão, remontando os pedaços de várias delas, relembrando cada momento feliz ao lado daquela mulher. Aquela mulher com quem ele realizou quase todos os seus sonhos; aquela mulher que o ensinou a ser alguém melhor; aquela mulher com quem ele deitara tantas vezes; aquela mulher que ele adorava vê-la dormir em seus braços; aquela mulher que foi a primeira (e única) a lhe dizer “eu te amo”. Uma lágrima solitária escorre por seu rosto pálido.


"Me sinto muito melhor 
Agora que você se foi pra sempre 
Eu digo a mim mesmo que eu não 
Sinto nem um pouco a sua falta"

O homem joga todas as fotos pela janela, livrando-se daquela maldita mulher que o fez mudar de vida. Ele nunca quis ser assim. Ele nunca quis ter um relacionamento. Ele nunca quis se apaixonar. A vida dele era nas ruas, nos bares. A vida dele era na madrugada;  bebendo, fodendo e brigando. Ela nunca devia tê-lo tirado do que o destino tinha lhe preparado.



"Não estou mentindo, negando 
Que eu me sinto muito melhor agora 
Que você se foi pra sempre"

O homem veste sua camiseta surrada, pega outra garrafa de bebida e sai pela porta do quarto, batendo-a com força. Está na hora de voltar a ser quem ele sempre deveria ter sido.



"Agora as coisas estão ficando claras 
E eu não preciso de você aqui 
E nesse mundo ao redor de mim 
Eu estou contente que você desapareceu"

Andando pelas ruas escuras e frias da cidade, o homem entra em um barzinho de esquina qualquer. O cheiro de bebida é forte e há uns 5 velhos bêbados jogados nos cantos, pelo menos por enquanto.  O homem senta no balcão e observa a atendente. A jovem não tem mais de 18 anos, veste uma mini saia e uma blusa que mal esconde seus peitos. O homem bebe os últimos goles de sua garrafa e chama a moça.


"Então eu ficarei fora a noite toda 
bebendo, fodendo e brigando 
até a manhã chegar"

No banheiro sujo do pequeno bar, os corpos suados e cheirando a sexo. A garota arruma sua roupa e sai do local. O homem sorri satisfeito, ajeita as calças e veste a camiseta. Pega seu celular jogado em algum canto do banheiro e olha as horas: 4h da manhã. Mas ele foca sua visão na foto do visor. Aquela mulher abraçava seu pescoço e sorria para ele. Aquele sorriso que ele tanto gostava de ver. Aquele cabelo que ele tanto adorava puxar e depois acariciar enquanto ela dormia no seu peito.O homem joga o celular na parede e sai do banheiro, entrega algumas notas de dinheiro na mão da garota que há pouco lhe satisfez, compra outra garrafa de bebida e sai do bar. Segue caminho de volta para a frente do seu prédio, vagando pelas ruas desertas da cidade. Passa em frente a uma praça e vê um casal aos beijos em um dos bancos. Há alguns anos atrás, era ele que estaria naquela situação a essa hora da noite. O homem continua seu caminho, pega o carro na frente do prédio e sai dirigindo sem rumo pelas ruas frias e desertas da cidade.


"Eu vou esquecer da nossa vida"

O homem para o carro e segue a pé por entre as árvores. Árvores aquelas que testemunharam diversos momentos de amor do antigo casal apaixonado. Ele bebe um gole da garrafa, já quase vazia e vai chegando no lugar onde todas as lembranças ainda estavam vivas. Dali ele podia ver toda a cidade, com suas poucas luzes naquela madrugada tão triste e gelada. Era o lugar onde tantas vezes o jovem casal se encontrou escondido e que tantas vezes se amaram.
Nenhum dos dois imaginava o desastre que seria aquele relacionamento depois de alguns anos.


"A primeira vez que você gritou comigo 
Eu deveria ter feito você sair 
Eu deveria saber 
Que poderia ser muito melhor"

Parado na beirada no morro, o homem toma os últimos goles da sua garrafa, olha para a lua tão bela, tão próxima dele. Ele fecha os olhos, respira fundo.
O homem já não tinha mais alma. Sua alma fora embora em um táxi as 23h da noite. Ele não tinha salvação, já estava morto por dentro. Foi ali onde tudo começou e era ali onde tudo terminaria. O homem puxa a faca do bolso da calça e crava-a em seu peito.


"Eu espero que você sinta minha falta 
Eu espero que eu consiga fazer você ver 
Que eu parti para sempre"

Escrita ao som de Gone Forever - Three Days Grace



sábado, 24 de maio de 2014

Doce Assassina

No frio da noite, eu te encontrei sentado no banco da praça sozinho. Especialmente naquele banco que era sinal do nosso relacionamento. Você me olhou e sorriu. Tentei retribuir o sorriso, mas o peso que carregava comigo não me deixara faze-lo. Sentei um pouco afastada de você para não lhe causar mais dor, porém você insistiu em aproximar-se e tocar em minha mão. Pedi para que se afastasse. Nosso encontro hoje seria inesquecível como todos os outros, mas não seria um encontro de amor. Atrevi-me a te olhar e tive a visão de um homem confuso e triste. Talvez você já soubesse o que estava por vir. Respirei fundo e deixei as palavras virem.

- Eu não sei a maneira menos cruel de te falar isso, mas você precisa saber. Eu fiquei quieta por muito tempo. Eu menti. E preciso dizer que isso não acontece há pouco tempo. Eu estou te enganando desde nosso primeiro encontro. Foi tudo planejado. Cada toque, cada beijo, cada palavra.  – respirei fundo novamente, eu não podia demonstrar fraqueza. – Estou prestes a quebrar seu coração, mas você precisa saber a verdade sobre mim. Eu sou uma assassina. Esse é o meu trabalho. Eu faço os homens se apaixonarem por mim e os mato. – vi em seus olhos o medo. Em outros tempos eu adoraria essa sensação, mas com você estava sendo diferente. Droga, porque você mexia tanto comigo? – Eu não gosto da pessoa que me tornei, mas foi preciso mudar. Tive o coração quebrado uma vez e decidi me vingar dos homens. Peço desculpas por quebrar seu coração, mas já lhe adianto que essa dor não vai durar tanto tempo assim. Querido, nossos planos para o futuro nunca se realizarão.
Você se levantou num salto. O medo em seus olhos crescera. Você já havia entendido qual o seu destino.

- Porém, também preciso confessar algumas coisas. Você me fez sentir coisas novas. Meu coração parece gostar de você, minha mente parece não conseguir te esquecer nem por um segundo. Teus braços me fazem sentir protegida e segura. Tua voz me acalma. Teu beijo me faz delirar. Teu olhar ... Ah, o teu olhar. O jeito que você me olha me faz sentir bonita. E o teu sorriso ... Você tem um sorriso muito bonito, sabia? E eu acho que você devia sorrir mais, não apenas com o canto da boca. Esse sorriso com o canto da boca que te deixa mais sexy. Que me faz sentir vontade de te puxar pela camisa e te beijar.

- Então porque vai continuar com o plano? – você resolveu se manifestar. A voz rouca, uma mistura de medo e pena de mim. – Porque não posso ser o homem com quem as coisas darão certo em sua vida? Porque não posso ser o cara que irá quebrar esse gelo que existe dentro de você? Que irá reconstruir cada pedaço do seu coração e cuidar dele enquanto eu viver? – você se calou. Eu sabia que você estava contendo a emoção. Ajoelhou-se na minha frente e pegou minhas mãos geladas. Não tinha medo de que eu o matasse ali mesmo. – Diga!
Após um longo suspiro, continuei.

- Pensei que poderia fazer dar certo, se eu tentasse. Mas eu não posso tentar. Eu não posso correr o risco.

- Você pode. Não vale a pena lutar contra esse monstro que existe ai dentro pra ficar comigo?
Monstro. Era exatamente isso que eu me tornara. Respirei fundo e levei uma de minhas mãos ao bolso do meu casaco. Peguei a arma e então o medo voltou ao seu olhar e você se afastou, caindo no chão. Levantei e me aproximei, segurei a arma com as duas mãos, tentando conter o tremor dos dedos.

- Eu deveria ter sido sincera. Deveria ter te contado desde o início que isso não era pra durar. Nunca deveríamos ter ido tão longe.

E sem te dar tempo para últimas palavras, eu atirei. Uma, duas, três vezes. Fechei os olhos e tentei me manter firme. Ao abri-los, vi seu corpo sem vida no chão da praça. O sangue escorria pelo peito e manchava suas roupas de frio. Então eu ergui meu rosto, segurei as lágrimas, aguentei a dor no meu próprio coração, te dei as costas e segui meu caminho. Vi as luzes acenderem nos prédios próximos a praça e em seguida um grito. Ouvi sirenes ao longe.

Eu nunca mais ficarei de boca fechada.

Ergui a arma em minha cabeça e atirei. 

Escrita ao som de Mouth Shut - The Veronicas

Frio, solidão e morte

Frio. Gelo. Neve. Não importa o lado que ela olhasse. Solidão. Tudo era duro, gelado, sem vida. Exatamente como seu coração. Ela já se acostumara a viver assim, aprendera que ficar sozinha e isolada era o melhor para todo mundo. Ela não queria mais machucar as pessoas que amava, que ama. Sentia falta do calor. Sim, sentia. Abraços quentes, amor correspondido, cuidados e carinhos gentis. Mas era melhor assim. Ela sabia disso como ninguém. Sozinha no meio da neve, ela tinha a certeza que fugir tinha sido melhor. As pessoas não tinham mais que se preocupar com ela, com seus problemas, confusões, manias e etc. Ela era uma pessoa ruim e tinha certeza disso. A solidão era o lugar dela. Assim ela não machucaria mais ninguém.
Da faca em sua mão, uma gota vermelha escorreu e manchou a neve branca. Sangue puro de um amor fracassado. Agiu por impulso, sem pensar. Percebeu a besteira que fizera apenas depois de sentir o cheiro forte de sangue e ver o corpo sem vida da pessoa que tanto amava. Morte. Era isso que ela fazia. Não apenas fisicamente, mas também mentalmente e sentimentalmente. Qualquer sentimento bom que se aproximasse, ela o destruía. Por excesso de amor, ela cometia loucuras. Por excesso de amor, ela matara a pessoa que cuidaria dela por toda a vida, que a prometera amor eterno, que seria sua cura.
~~
- Ela é louca. Uma loucura que eu nunca havia visto antes. – o homem atrás do vidro murmurava.
- Ela é uma assassina. Uma assassina de amor. – a mulher ruiva, que observava por cima do ombro do homem, respondeu. Um silêncio ensurdecedor tomou conta do local por longos minutos.
- Ela apenas queria se proteger. Proteger o coração de mais uma ferida. – uma mulher morena entrou no local, parou ao lado do homem e, observando o vidro, continuou. – De certa forma, eu a entendo. Sei o que é a dor de um coração machucado. Sei o que é esforçar-se e não ser reconhecido. Sei como é se sentir como um peso de papel. Sentir-se inútil. Preferir a solidão, o frio, a ausência de amor. – a mulher aproximou-se mais do vidro e pousou a mão ali, sentindo o frio percorrer sua pele. – Eu sinto pena dela. Sua “loucura”, se assim preferirem chamar, não tem cura, não tem tratamento. O problema dela não é na mente. É no coração. E esse é um local que nunca teremos acesso. Ninguém nunca terá. Ninguém pode descobrir ou entender o que passa em seu coração, seus sentimentos serão para sempre um mistério.
Mais um momento de silêncio.
- Ela construiu um muro em volta dele. Um muro alto, com cerca elétrica. Muito bem protegido ao redor. Nenhum homem ou mulher conseguirá chegar perto dele. – sussurrou a ruiva.
~~
Ela voltou a olhar ao redor. Depois fixou o olhar na gota vermelha manchando a neve. Olhou a faca em sua mão e deixo-a cair na neve. Uma lágrima escorreu dos olhos. E mais outra. E mais outra. Ergueu a cabeça e respirou fundo. Olhou as mãos manchadas de sangue.
Virou-se rapidamente, como se algo mudasse em sua mente e correra em direção ao vidro. Gritou alto. Debateu-se conta o vidro. Os olhos vermelhos.
~~
Do outro lado, as pessoas se afastaram, assustadas. A mulher morena foi a única a permanecer ali. Respirou fundo e retirou a mão do vidro. Levou-a em direção a moça e, como se pudesse acariciar seus cabelos, fez movimentos carinhos com a mão. O homem atreveu-se a se aproximar um pouco, parando ao lado da mulher morena. A mulher vira os olhos da garota molhados, vermelhos. Aquilo não era loucura. Não era raiva. Era dor. Dor intensa. Dor de um coração partido. Dor de falta de carinho, de amor. Dor de não ser importante para alguém. Dor da certeza de que nunca mais seria livre. A mulher a entendia.  A menina, então, parou de bater no vidro e respirou fundo. A mulher voltou a pousar a mão no vidro, com medo. A menina, como se pudesse ver a mulher morena do outro lado, fixou os olhos e também pousou sua mão sobre o vidro.

- Sinto informar aos senhores aqui presente, que, nesse estágio, já não há mais cura. Seu problema é a falta de amor

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Cinquenta vezes

Ela tenta. Tenta uma, duas, três, cinquenta vezes. Quebra a cara uma, duas, três, cinquenta vezes. Levanta uma, duas, três, cinquenta vezes. Mas desiste apenas uma vez; desapega apenas uma vez; sente dor apenas uma vez. Ergue a cabeça com a promessa de evitar acontecimentos futuros. Promessa furada. Ela sabe que vai se apaixonar loucamente de novo, vai dar o melhor de si e não receber o que acha que deve, vai sofrer, vai encharcar o travesseiro de lágrimas, vai desistir, vai desapegar, vai sentir saudade, vai recordar, vai viver. Uma única brecha será capaz de mostrar toda a sua fraqueza. Ela tem medo de ser abandonada, apesar de estar acostumada a viver no total esquecimento. Teme o escuro tanto quanto na infância. Não suporta o silêncio. Tem conhecimento de que na combinação deles os pensamentos sobrevoam em frente aos seus olhos, o nariz tranca, a voz embarga, os olhos molham e o coração dói insuportavelmente. Junta as mãos e pede aos céus para ser forte, para que dê certo uma vez na vida ao menos. Não pede outra chance, pois sabe que já desperdiçou muitas e essa é aquela que não se pode perder. Sente que já está perdendo, escorregando entre seus dedos...tão rápido. Sozinha num canto do quarto, procura um modo de se desligar do real, inventa um mundo só dela em que o controle está apenas em suas mãos. Se abriga ali como uma criança se abriga no colo do pai. Sentindo-se protegida ela fecha os olhos e mergulha nos seus sonhos. Chora uma, duas, três, cinquenta vezes. Foge uma, duas, três, cinquenta vezes. Esconde-se uma, duas, três, quinhentas vezes.

domingo, 9 de junho de 2013

Liberdade manchada de vermelho

“Nós dois temos os mesmos defeitos
Sabemos tudo a nosso respeito
Somos suspeitos de um crime perfeito,
Mas crimes perfeitos não deixam suspeitos.”
Pra ser sincero – Engenheiros do Hawaii

Já fazia um tempo que ela corria pelas ruas frias da cidade, o vento batendo no rosto e nos belos cabelos escuros. Aquela sensação de liberdade que talvez ela nunca mais tivesse a oportunidade de sentir. Observou a lua cheia logo acima de sua cabeça, as névoas brincando com suas pernas. A cidade estava em total escuridão, não havia sons naquele local. Correu até um beco sujo e com um péssimo cheiro, sentou-se em um canto escuro e deixou-se chorar. O vermelho manchava não apenas suas mãos, mas também suas roupas e até uma parte do rosto. Fora cruel. Observou as mãos, o sangue escorrendo e a sujeira do beco entre os dedos. Tirou a jaqueta, acomodou-se no canto tentando ficar invisível. Ah, como ela queria ser invisível nesse momento. Sabia que não demoraria muito para que eles a encontrassem ali com frio, suja, assustada e com a marca de um crime.

Os pensamentos vagaram para longe, para o desconhecido, buscando um pouco de liberdade. O frio já aumentara, ela batia o queixo, mas a possibilidade de sair dali e ir para um lugar quente simplesmente não existia. Fechou os olhos e imaginou um belo campo florido, viu-se correndo entre as milhares de flores que ali haviam, livre. Fitou uma rosa branca, passando os dedos em suas pétalas puras. Abriu os olhos. Aqueles olhos escuros, profundos e assustados que nunca mais veriam a liberdade. Olhou novamente as mãos sujas e tentou limpá-las na jaqueta, sem sucesso. A escuridão parecia uma ótima amiga para ela no momento. A única luz que havia ali, além da lua, era de um poste estragado que piscava a cada 15 segundos. Ela tirou as botas, deixando os pés livres da dor.

Havia maldade no ato. Sabia que não deveria tê-lo feito, mas a raiva era tanta que ela não se deu a oportunidade de pensar antes de agir. Tinha deixado, então, de ser a menina inocente que todos enganavam, que sempre aceitava tudo, que nunca duvidava das palavras. A dor que ela sentira antes do ato, ela tinha certeza, não era tão grande quanto a que sentia agora. Apesar de saber do erro, ela se orgulhava. Havia provado que mudara, agora era fria e rude, uma assassina. Ela havia finalmente aprendido a questionar e não aceitar tudo e, para provar isso, destruiu a vida de quem mais amava. Sabia que sentiria falta do canalha, mas também sabia que ele merecera o fim que teve.

Remexendo os bolsos da jaqueta, encontrou sua arma. Olhou-a atentamente sem acreditar que tivera a capacidade e a coragem de agir daquela forma. Tocou-a com cuidado, observando cada detalhe do objeto. Tão pequeno, mas ao mesmo tempo tão poderoso. Deixou o objeto ao lado de suas botas. Ela era uma criminosa. Olhou para o céu, a bela lua cheia a encarava. “Perdoe-me”, sussurrou tão baixo que ela mesma não se ouviu. Ela havia perdido a calma, deixara a razão de lado e agiu apenas pela raiva que a tomava no momento. Vendera a alma ao diabo sem pensar duas vezes. A crueldade corria em suas veias, pulsando cada vez mais forte. O barulho do tiro foi o que a acordou, fazendo-a perceber o erro. Talvez houvesse sido mesmo um erro, talvez não. De qualquer maneira, ela se sentia bem, apesar de saber que nunca mais saberia o significado da palavra “liberdade”.

No meio da escuridão, ouviu-se o som das sirenes. As luzes dos prédios próximos começaram a acender, revelando seu esconderijo. Em um susto, ela pegou a jaqueta e seguiu correndo por qualquer caminho que a pudesse levar a um novo esconderijo. Não era essa a vida que imaginara a alguns anos atrás, uma vida de fugitiva, porém tinha que aceitar que essa era a vida que ela vivia agora. Descalça e sem rumo, ela corria o mais rápido que podia. As pedras machucavam seus pés, ainda coberto por névoas. A sujeira já tomava conta de todo o seu corpo. Ah, como desejava um banho quente no momento. Tomou coragem o suficiente para olhar para trás e ver o carro virar a esquina. Dois homens seguiam correndo, enquanto um outro gritava algo pelo rádio. Ela arregalou os olhos e seguiu em direção a outra rua escura.
Sabia que não aguentaria por muito tempo, não demoraria muito para que eles a alcançassem. Estava cansada, com dores nas pernas e nos pés, mas não se renderia facilmente. A rua que estava agora já se encontrava iluminada. A sirene aumentava a cada minuto, informando-a que não adiantava fugir. Observou olhos curiosos pela janela. Uma casa quente, confortável, era tudo o que ela queria. Procurou a arma desesperadamente pelos bolsos, mas ela havia deixado o objeto no beco, junto com suas botas. Parou subitamente. Olhou ao redor. Estava completamente iluminada pela lua a pelos postes da rua. Virou-se, vendo a proximidade do carro. Os dois homens, que ela havia visto assim que saira de casa, já estavam com as armas em mãos. Sabia que em pouco tempo era ela quem estaria manchada de sangue no meio da rua. Era seu destino. Nada mais justo. Deu dois passos em direção a eles e ouviu o barulho alto do tiro. Tudo havia ficado preto.

De repente ela estava em um campo grande, como aquele que ela havia visto no beco. A brisa leve da primavera tocava-lhe o rosto. Dava passos calmos, observando cada flor. Margaridas, rosas, tulipas e até lírios. Sentou na grama fofa e suspirou. Ouviu o barulho dos pássaros e abriu os olhos, vendo-os voarem pelo céu lindamente azul. Deitou devagar sob a grama, deixando-se relaxar. Adoraria sentir-se livre mais uma vez, sentir aquela brisa nos cabelos durante as manhãs da bela estação que chegava. Pisar naquela grama fofa e correr por ela o mais rápido e longe que pudesse, ouvir o som dos pássaros e observar as borboletas brincando na sua frente. Sentir o aroma fresco de cada linda flor que ali havia. Arrependia-se de não ter aproveitado quando podia. Talvez ela não merecesse aquela liberdade, a capacidade de sonhar novamente, as sensações que a vida lhe dera e ela própria tirara. Parecia injusto, mas não era. Era justo demais. O destino talvez tenha sido cruel demais, mas ele não tinha culpa. A única culpada ali era ela mesma. Levantou, pegou uma flor. Mirou-a com cuidado. Era a mesma rosa branca de sua imaginação. Apertou-a com força, deixando os espinhos perfurarem sua pele. Uma gota de sangue vermelho vivo (ou talvez já morto) escorreu por entre os dedos, pingando na grama e manchando todo o belo cenário. A rosa começava a sujar-se de vermelho, mas ela não a soltou, ao contrário, apertou-a com mais força, os espinhos afundavam mais.

Fechou os olhos mais uma vez, deixando tudo aquilo desaparecer para, então, abri-los e enxergar as grades sujas da prisão a sua frente. Fitou as mãos ensanguentadas e sujas. Ela realmente não merecia aquela liberdade. Estava destinada a viver presa, vendo o sol nascer por trás das grades. Era uma assassina e assassinas frias como ela não possuem o direito de liberdade, não possuem o direito de nada. Olhou-me com uma expressão maldosa, mas ainda assim pude ver a menina que era antes do ato, antes do sofrimento, era uma pequena criança insegura, doce, amedrontada e um tanto assustada que carregava em sua alma.

Da coleção "Escritores Musicais - vol. 1". 

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Renascer


O som das nuvens carregadas estremeceu o céu, anunciando a chegada da chuva. Minha visão, já embaçada, observava o chão escurecer rapidamente. Levantei o rosto, vendo a escuridão logo acima de mim. Sorri ao sentir o primeiro pingo de chuva cair em meus lábios. Ouvi as trovadas cada vez mais fortes, o negror do céu cegava meus olhos, as finas gotas de água me molhavam aos poucos, renovando minha alma ainda viva. Abri os braços, na doce sensação de liberdade, deixando minha mente vazia e meu coração leve serem atingidos pela garoa gelada. Apertei os olhos com força, misturando as lágrimas com as pequenas gotas de chuva. Aquilo era sensacional. Não havia mais problemas, não havia mais dor, não havia mais infelicidade. A tristeza seguia o caminho da chuva, das mesmas gotas que escorriam pelo meu corpo em direçao ao solo. Não existia mais você, não havia mais nós, não sei dizer ao certo que eu mesma ainda existia naquele momento. Provavelmente não.
A renovação foi chegando aos poucos, me abraçou delicadamente e eu não soube negá-la. Aquela velha menina se juntou com as pequenas poças de água no chão duro e frio, dizendo adeus ao meu corpo e minha alma agora morta. A chuva já caía forte, pingos grossos enxarcavam não apenas meus cabelos e minhas roupas. Olhei as poças divertidas, brincando umas com as outras, unindo-se, misturando várias pequenas partes do meu antigo ser em uma grande poça de ilusões mortas. Fechei os olhos, sentindo a vida renascer aos poucos na minha alma, renovando meu corpo gelado não apenas pelo vento e pela chuva fria. Uma trovoada forte, uma luz cortando o céu da forma mais bela que eu jamais havia visto. Fechei meus braços, abraçando meu corpo. Senti meu peito bater forte, o coração havia reaprendido a funcionar no modo correto. Meu cérebro foi invadido por milhares de informações e eu não conseguia administrar tantos pensamentos. Senti o calor subir pelas minhas pernas, passar pelos meus braços, alcançar meu pescoço e enrubecer minhas bochechas. Sorri e ousei olhar para o céu negro. As nuvens se desuniam, dançavam no grande salão azul celeste, divertindo-se ao som da música baixa. Um vento forte soprou meu rosto, bagunçou meus cabelos, recordou quem eu era e quem eu devia ser. Agarrei o sonho quase enterrado e prometi levá-lo ao céu. Aquele mesmo céu que agora sorria para a minha nova alma. Um fino raio de luz surgia, esquentando todo o gelo. Suspirei e voltei a viver a vida a qual havia sido esquecida por muito tempo, guardada nos sonhos de uma doce e inocente criança de 4 anos.